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Detinha

 

– Detinha, pode nos contar a sua história

Texto inspirado (contendo trechos do texto original) em “Banho de Noiva” de Nelson Rodrigues

 

          Eu me lembro do dia em que conheci Peçanha. Era Toninho na época.

          Ele morava na mesma rua que minha avó... ah, minha querida vozinha, que saudades tenho dela!

          Fui criada sem pai, filha de uma mãe trabalhadeira que só voltava ao fim do dia, com o feijão e alguns pães para abastecer o dia seguinte. Passava os dias de trabalho de mamãe na casa da vozinha, aquela mina de amores e bolinhos de goiaba.

          Vovó começava o dia me dando um banho. Ela dizia que um dia bom tinha de iniciar com um banho bem tomado, para lavar todos os males da noite escura sombria, dos pesadelos e dos bichinhos que moram embaixo da cama, e fazer com que você e tudo ao seu redor sejam flores. Ela me lavava, perfumava e enchia meus cabelos de tranças, presilhas e pétalas das mais diversas flores.

              Quando eu voltava para sua casa, depois de brincar na rua, ia sempre lavar as mãos para comer alguma coisa. Um dia, vovó me viu fazendo isso, destinando-me a um bolinho que estava na cozinha. Ela entrou devagar e me perguntou:

          – Detinha, tomaste banho depois de voltar da rua?

          – Não, vovó. – Respondi.

          Ela ajoelhou-se ao meu lado e, com aquele seu sorriso de experiência, falou:

          – Detinha, para que sua energia e sua alma estejam sempre limpas, seu corpo tem de estar também. Você sabia que o suor é cheio de sujeira? Não podemos deixar que isso nos atrapalhe, ainda mais em um clima como o nosso, que faz suar dia e noite sem parar!

          Desde este dia, passei a não suportar nem mesmo o cheiro de suor.

          Falando em brincar na rua, foi assim que conheci Toninho.

          Um dia, eu estava andando de bicicleta e perdi os freios, por isso acabei caindo no asfalto e ralando meu joelho.

          Um menino cabeludo, de olhos pretos, chegou bem perto e me ajudou a levantar. Ele até me levou para casa, empurrando a bicicleta enquanto eu ficava sentada no banco. Quando chegamos, eu disse:

          – Muito obrigada...

          – Antônio. Toninho. Toninho é melhor. – Ele sorriu.

          – Então obrigada por tudo, Toninho. – Estendi minha mão, que ele apertou com timidez. – Até uma próxima. – Fui me virando para a porta de casa.

          – Tome mais cuidado...

          – Detinha. -Falei, em seguida abrindo meu maior sorriso.

          Nesse dia tomei um banho demorado, talvez o mais demorado até então.

          Brinquei com Toninho por dias a fio. Meses se passaram, dois anos correram. Dos meus nove aos onze, vi esse menino quase todos os dias. Pode-se apaixonar com nove anos?

          Passados esses dois anos, minha vozinha nos deixou e minha mãe foi atrás de um trabalho em Niterói, que ela tanto queria e só não tentava conseguir pois queria ficar os mais perto possível de vovó. Fui junto.

          Toninho desapareceu de minha mente devagar, como se apaga a memória de uma paixão.

          Com dezoito anos, voltei para o Rio em função de um emprego que me foi oferecido em um jornal. Pagava bem, o salário era até melhor que o de mamãe.

           Lá eu era muito querida (vovó sempre disse que eu era cheia de carisma) e, depois de duas semanas, fui chamada para a festa de um colega de trabalho.

          Da festa só lembro que estava divertida, pois os detalhes foram apagados pelo melhor acontecimento da noite.

          Joaquim, redator do jornal, me apresentou a um moço que trabalhava como editor.

          – Esse aqui é o Peçanha! – Ele disse, animado.

          – Antônio Peçanha. – O moço me estendeu a mão.

          Prestei atenção no aperto, parei por um momento e reconheci os olhos pretos.

          – Detinha? – Ele me olhava, incrédulo.

          – Toninho? – Copiei a sua entonação.

          – Toninho? -Joaquim perguntou, confuso.

          – Agora é Peçanha. – Ele falou, sorrindo para mim.

          Eu e Peçanha dançamos ao som de “Samba De Uma Nota Só” e passamos o restante da noite conversando. Assim seguiram dias, semanas e, logo, éramos namorados.

          Ele era tão atencioso. Colhia flores para mim todas as semanas, me presenteava com laços, elogiava minhas roupas, meus cabelos trançados, meu cheiro floral depois de um banho, andava de bicicleta comigo ouvindo o som do mar do Rio de Janeiro. Pode-se apaixonar com dezoito anos! Pode-se casar-se com dezoito anos! E por que não?

          Ele demorou a fazer, mas pediu a minha mão e, com dezenove anos, eu estava noiva. Noiva! Mal podia acreditar.

          Um dia antes do que deveria ser o melhor dia da minha vida, acordei feliz, contente que só! Tomei banho, coloquei um vestido e saí trabalhar com meu melhor acessório: meu cheiro agradável. Ao chegar no trabalho, um colega pediu que eu levasse um documento para que a chefe de redação assinasse. Lá fui eu para o melhor setor do jornal: o setor onde Peçanha trabalhava!

          Cheguei acariciando meu noivo, o que foi motivo de chacota entre seus colegas. Não me importei, beijo ele na frente do Papa se eu estiver com vontade!

           Peguei a assinatura e vi que Peçanha se afastara. Fui atrás dele até a sala em que tinha entrado e perguntei com meu costumeiro sorriso floral:

          – Meu filho, posso te fazer uma pergunta?

          – Mete lá. – Peçanha disse, bocejando.

          – Quantos banhos tu tomas?

          – Por quê? – Meu noivo parecia ter recuperado a atenção.

          – Responde, quantos banhos tu tomas? – Insisti

          – Um, ora essa!

          – Só?

          – Tu achas pouco?

          – Acho. – Falei com firmeza. Ele, sem dizer mais nada, saiu e me deixou sozinha.

          Logo depois, quando passei pela sua frente para retornar ao meu setor, ele agarrou meu braço e me puxou para uma conversa privada.

          – Estavas falando sério?

          – Por que não? – Mostrei-me chateada.

          – Mas que piada infeliz!

          Queria fazer com que me entendesse, então meti:

          – Sei que, de uma maneira geral, todo mundo toma um banho só. Mas eu não vou atrás de conversa não. Tomo dois, no mínimo. Quando faz calor, três. Até quatro. Não tolero cheiro de suor, nem em mim, nem nos outros. Palavra de honra! – Ao terminar, senti um arrepiozinho de amor ao lembrar de minha querida vozinha.

          – Quatro banhos? – Ele parecia assustado.

          – Sim senhor: quatro. Num clima como o nosso um banho é pouco, não dá.

          – Ora, Detinha! Tira o cavalo da chuva! Tu achas, talvez, que eu vou passar o dia todo, as vinte e quatro horas do dia, debaixo do chuveiro? Achas que eu não tenho mais nada que fazer senão tomar banho? Ora pipocas! – E voltou para seu local de trabalho exalando raiva e confusão.

          Saí pisando forte.

          Mas o que era uma discussãozinha, certo? Com certeza existiriam ainda muitas durante o casamento, mas é o preço que se paga por ter encontrado a sua metade da laranja.

          No final da tarde, houve uma festa em minha casa, cheia de convidados, brindando ao nosso noivado. Eu tinha muito o que fazer, então chamei Peçanha e falei baixinho:

          – Meu filho, vai, ouviu, vai que eu tenho muito o que fazer, sim?

          Ele me beijou em uma das faces, bem levemente, e gritou para os convidados:

          – Bye-bye!

          – Bye-bye! – Devolvemos.

          Quando os convidados saíram, tomei um banho relaxante, repleto de sais e perfumes florais. O dia seguinte era o dia do meu casamento. O dia seguinte era o dia do meu casamento! Dormi pensando em flores, beijos e amores.

          Acordei sem peso nos ombros, sem amassado no rosto e sem suor. Sem suor! Acordei tão feliz que estava livre de toxinas. Livre! Mesmo assim tomei um banho, esfreguei meus olhos e amaciei logo abaixo dos mesmo para garantir que minhas olheiras não deixariam nem rastro nesse dia. Era o meu dia. O dia. O dia pelo qual esperei por tanto tempo tinha chegado.

          Logo depois que saí do banheiro, meu telefone tocou. Era Peçanha, meu noivo, meu Toninho.

          – Bom dia, minha linda.

          – Bom dia, meu amor. – Sorri espontaneamente. – Já tomaste banho?

          – Será o benedito? Isso é ideia fixa ou que diabo é? Que graça!

          – Você se ofendeu? Tipo da pergunta natural! – Me preocupei.

          Ao meio-dia nos casamos no civil. Estava finalmente casada. Casada! Com o amor da minha vida, meu lindo dos olhos pretos.

          Saindo, cochichei ao seu ouvido:

          – Vai pra casa tomar banho, ouviu? – E, bem baixinho, acrescentei: - Quero te ver cheiroso, bem cheiroso!

          – Sossega, leoa!

          Voltei para casa e tomei outro banho, esse de rosas, a flor do amor, da qual a igreja estaria cheia. Trancei meus cabelos como vovó me ensinou e me enfiei naquele vestido maravilhoso, que continha todos os detalhes do meu ser e do meu viver no momento. A parte de cima deixava ver que eu era acinturada, e a parte debaixo deixava perceber que eu flutuava, de tão apaixonada.

          Entrei na igreja me sentindo a mulher mais feliz do mundo, inebriada pelo cheiro de rosas. Essa imagem seria inesquecível.

          Depois da troca de alianças, tivemos uma pequena comemoração. Ao entrarmos no salão, Peçanha cochichou para mim:

          – Meu anjo, vê se capricha na pressa, ouviu? Vê se caímos fora cedo!

          Senti um leve cheiro de suor. Só abri a boca uma vez, para perguntar:

          – Tomaste dois banhos hoje?

          – Mas que ideia você faz de mim? Espera lá! – Ele estava inquieto.

          Dançamos o mesmo sambinha da noite do nosso reencontro, e foi nesse momento que eu tive certeza de que estava com a pessoa certa para mim.

          Depois de algumas horas, ele me pegou no colo e saímos pelos fundos, para evitar despedidas demoradas. Experimentei uma deliciosa sensação de fuga, de rapto. Fomos até o hotel na montanha numa velocidade macia, chegamos lá e Peçanha me conduzia, às pressas, até nosso apartamento já reservado. Entramos e ele, ofegante, destrancou o quarto. Logo que a porta se fechou, meu marido chegou perto de mim, muito perto, quase me prendendo com seus braços, rápido demais.

          “Não. Não é assim que deve acontecer! Não foi assim que sonhei.” Pensei, enquanto me desvencilhava de sua corda de membros superiores.

          – Que é isso? – Ele me perguntou, com uma expressão que misturava confusão e decepção.

          – Primeiro, vou tomar banho. Faço questão absoluta. – Ele me pediu incontáveis vezes que eu mudasse de ideia, mas não ia acontecer. – Ou você não percebe que este é um momento em que a mulher precisa estar cem por cento?

          Conduzi-me até o banheiro e, num pulo, posicionei-me embaixo do chuveiro.

          Aquele sim, foi meu mais longo banho. Meu banho de noiva, meu banho de mulher. Entrara naquele banheiro Detinha e sairia Odete Peçanha.

          Lavei-me, esfreguei-me, tateei-me, senti-me e lavei-me novamente. Penteei-me, respirei o ar úmido e me senti renovada. É por isso que tomar banho é tão bom: nos renova, nos floresce.

          Depois da última enxaguada de cabelos, saí do chuveiro e vesti minha camisola, uma camisola especial, de seda, rendada, que eu tinha guardado para este dia. Saí do banheiro preenchendo o quarto com minha voz, um pouco mais sensual do que estava acostumada:

          – Meu bem?

          Peçanha me viu e expirou forte. Não demorou para que tentasse me envolver demais em seus braços outra vez.

          – Calma, calma! – Falei, ao me afastar.

          – Calma por quê?

          – Já tomei meu banho. Agora é tua vez. – Falei, ainda com aquela voz desconhecida porém gostosa.

          – Ora, Detinha! Que banho? Parece criança! Vem cá, anda, vem cá!

          Nunca o tinha visto agitado daquele jeito. Coloquei minhas mãos entre nossos corpos.

          – Das duas uma: ou você toma banho ou não toca em mim! – Senti minha respiração ofegante.

         – Você está insinuando o quê? Que eu não tomei banho? Tem nojo de mim? Fala! Tem nojo?

          Não sabia o que dizer. Ele se aproximava e eu me afastava. Ainda me sentia ofegante e agora com os olhos marejados.

          – Não me custaria tomar um banho, claro. Mas você não vê que é humilhante para mim? – Baixou o tom de voz. – Se eu tomar banho, fica parecendo o quê? Que eu sou um sujo, um sebento, um sujeito que cheira mal. – Ele se ajoelhou em frente a mim e olhou fundo nos meus olhos. – Ouviu meu anjo? – Baixou mais ainda a voz. – Há certos papéis que um marido não pode fazer!. – Levantou-se. – Agora, um beijo!

          – Não! – Falei, na defensiva. – Primeiro o banho. Ou banho ou nada feito! 

          Ele me pediu de novo, se ajoelhou d enovo, implorou por um beijo. Olhou de relance para o banheiro, mas não desistiu. Implorou mais um pouco, até que tudo mudou.

          Peçanha foi tomado por ódio. Ódio e fúria. Vi o menino de olhos pretos se tornar um monstro sujo de dois metros de altura, avançando em minha direção, rápido, rápido demais.

          Corri pelo quarto, mas o monstro corria atrás. Segurava meus braços, minhas pernas e se tornava cada vez mais difícil de me desvencilhar. Ele arrancou pedaços da minha roupa. Vi toda a renda, junto a um chumaço do meu cabelo, para no chão. Apertava minhas coxas entre suas mãos e meu busto contra seu peito. Quando me recusei a beijá-lo, ele me deu uma bofetada em uma das faces, a mesma que tinha beijado no dia anterior.

          Nunca me senti tão mal, tão maltratada, e pelo Peçanha. Pelo meu Toninho!

          Aquela bofetada provocou em mim mais que dor. Provocou medo, decepção e um mero segundo de força, que usei para estapear sua face como fizera comigo. O choque fez com que ele diminuísse de tamanho e a tensão nos membros.

          Consegui sair. Corri, aos prantos, seminua, descabelada e suada pelo corredor do hotel.

          Alguns funcionários e outros hóspedes me viram e saíram para acudir a mulher amedrontada, que gritava enquanto sentia lágrimas infinitas despencarem de seus olhos.

          Vi Peçanha sair do quarto e se posicionar na porta, com uma expressão ainda furiosa, porém chorosa também.

          Apontei para ele, o meu amor que se convertera em um monstro em nossa noite de núpcias, um homem que não me conhecia e, principalmente, não me amava. Quem ama não arranha, estapeia e arranca cabelos de sua parceira. A parceria era para ser para a vida toda.

          Apoiada em uma camareira e com meu dedo indicador congelado na direção de Peçanha, gritei com uma voz que eu também não conhecia, mas desta vez não era de sensualidade, e sim de medo, de pavor puro:

          – É um porco! Casei-me com um porco! Tirem esse porco daqui!

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