CAIO
Não sei nem mais definir o que aquilo virou. Uma hora aqueles dois estavam discutindo, e na outra estávamos os três abraçados, chorando feito criancinhas.
O pessoal lá embaixo começou a se dispersar, cada um seguindo seu caminho, o que só poderia significar uma coisa: o enterro tinha acabado. Cecília Lass estava oficialmente no passado, entregue às lembranças de cada um.
Nós três não fizemos este movimento, e sim continuamos lá, determinados a não finalizar nossa despedida tão cedo.
Quando vi, estávamos os três sentados na grama, limpando as lágrimas e falando dela.
– Eu lembro quando a gente foi ter a nossa primeira vez. – Luiz disse, saudoso. – Ela me disse que não tinha problema se durasse só cinco minutos. – Ele riu.
– E durou? – Perguntei, curioso.
– Durou umas duas horas.
Félix assentiu com respeito.
– Ela não era de cansar muito fácil. – Ele disse. – Mas também jamais forçava qualquer coisa.
Era estranho ver como conhecemos a mesma garota, mas em fases e facetas completamente diferentes.
Os dois ali eram classificados como ex dela, e eu...
Um amigo, só isso. Um amigo apaixonado, que nunca tivera coragem de se declarar, para não deixar minha amiga, que parecia precisar tanto de um porto seguro sem qualquer intenção diferente da compreensão, desconfortável.
Começamos a lembrar de suas características físicas.
– O sorriso dela era a coisa mais linda do mundo, no meio dos cabelos bagunçados enormes – Falei, ajeitando meus óculos, que tinham deslizado para a ponta do nariz.
Félix e Luiz concordaram.
– Ela já teve cabelo curto, sabia? – Luiz comentou. – Foi uma fase, no Ensino Fundamental, de cabelos curtos repicados e franja. Me dói dizer, porque eu também não tinha os melhores cabelos naquela época, e porque sempre achei ela linda, mas não ficava muito com não.
Não consegui imaginar a Cecília de cabelos curtos. Para mim, sua juba negra era sua marca registrada.
– Ela gostava de iniciar discussões sobre assuntos aleatórios com vocês também? – Perguntei.
Félix negou com a cabeça.
Luiz disse que suas conversas eram tranquilas, e discussões eram só as que todo casal tinha.
Fiquei feliz com aquilo. Ao saber que tinha uma parte da Cecília que seria, para sempre, somente minha, me senti especial. Um confidente, digno e especial.
A principal diferença entre eu e aqueles caras, é que eles não estavam convivendo com ela antes de morrer. Seu relacionamento com Luiz já tinha chegado ao fim, assim como o com Félix, mas comigo... ainda restavam mensagens recentes, áudios animados e planos para o mês seguinte, para alguma mostra cultural, café ou cinema.
Quando uma pessoa perto de você comete suicídio, é inevitável se perguntar que participação você pode ou não ter tido naquilo. Se, de alguma forma, poderia tê-la salvado.
Eu sei perfeitamente que é bem mais complicado que isso, que os conflitos acontecendo com ela eram internos e, apesar de eu ser uma presença positiva ou negativa em sua vida (acredito que positiva), não posso me considerar a parte mais relevante. Os que estão ao redor são apenas uma parcela do que pode ou não machucar, o problema é que o interior está completamente desgastado, então é quase impossível de se defender de quaisquer investidas, por menores que sejam.
Esses pensamentos passaram pela minha cabeça e logo os expulsei. Já falei que não gosto de ficar refletindo sobre questões que não vão me levar a nada. Sem resposta é igual à loucura.
– Ela ficava linda naquelas blusas de lã fina com manga larga, isso sim. – Falei.
– E botas. – Félix complementou. – Em dias frios, mas nem tanto. Como hoje.
– O dia de hoje está bem do jeito que ela amava. Um pouco frio, um pouco de Sol... equilíbrio. – Luiz finalizou.
Respiramos fundo, os três.
Como seriam os nossos cotidianos dali prafrente? Os deles talvez continuassem quase iguais. O meu envolveria muito tempo ‘livre’ na faculdade, que eu teria de ocupar de alguma forma.
Estar com a Cecília era parte da minha rotina. Uma parte que eu amava.
– Vocês pensam no que se passou pela cabeça dela? – Félix perguntou, sem nos olhardiretamente. – Antes de fazer os cortes.
– Tento não pensar nisso. – Falei.
– Acho que desespero. – Foi a vez de Luiz, que mexeu na grama ao lado de onde estava sentado.
Conversamos mais um pouco. Na verdade, mais muito. Falamos dela, de nós com ela, de nós sem ela, da faculdade com ela, da faculdade sem ela, da escola com ela, da escola sem ela, de suas roupas, dela sem suas roupas, de seu jeito de dançar e mais um pouco de seus cabelos, mas, assim como meus papos com a Cecília, aquele não poderia ser para sempre. Teria que acabar, eventualmente, em um silêncio desconfortável e triste.
Não éramos amigos. Estávamos apenas unidos por um elo em comum, temporariamente. Começava a escurecer e o dia nos dizia: ‘hora de ir embora’, mas nenhum de nós queria aceitar.
Foi Félix quem sugeriu que fôssemos, antes que ficasse escuro e frio de verdade, mas demoramos a nos levantar após a sugestão, até mesmo ele. Passamos aproximadamente meia hora encarando o ponto onde havia acontecido o enterro, sem dizer nada.
Tivemos que levantar o Luiz, que voltara a chorar e sentia-se fraco, e saímos, escorados um no outro. No portão do cemitério, nos despedimos, e cada um seguiu o seu caminho.
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