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O Porteiro

           A Lidia do 402 terminou com o Isaac. 

          Ela desceu aqui com uma caixa de papelão nas mãos, colocou-a sobre o balcão, avisou que viriam buscar em algumas horas e então fez meia volta e entrou no mesmo elevador do qual tinha saído. Enquanto a tirava de cima do balcão e colocava no chão ao meu lado, pude ver uma camiseta da banda Ramones, fones de ouvido, um travesseiro, um par de chinelos e uma embalagem de xampu masculino. Reconheci a camiseta, a qual já tinha visto Isaac usando. Eu nem mesmo perguntava se podia liberar a entrada do rapaz, pois ele aparecia no prédio pelo menos quatro vezes na semana.

           O Cássio do 502 apareceu, com a mesma cara de ressaca de quase todo domingo.

           Uma entrega para o casal do 801: pacotes de fralda. O grande dia está chegando.

       Lembro de como eu e minha esposa ficamos com a chegada de Mariana: extremamente ansiosos. Eu acariciava sua barriga sempre que tinha alguma oportunidade, e não raro nos pegávamos rindo feito bobos olha do para as coisas que faziam parte do enxoval. Agora ela está com 19 anos e morando sozinha. Saiu de casa há pouco mais de três meses. Com a chegada do Daniel não foi diferente. Até a Mariana estava toda boba.

          Fui almoçar. Tenho ficado até bem tarde no trabalho, então a sala de funcionários já conta permanentemente com pertences meus: uma almofada de pescoço, toalha de rosto (não gosto de usar a mesma que os outros usam. Eu e a Cibele temos duas em nosso banheiro), dois ou três livros e uma jaqueta. No salão de festas, que fica no mesmo andar da portaria, tem uma geladeira e um micro-ondas que uso para guardar e esquentar minhas marmitas. Cibele não se importa de eu voltar mais tarde para casa. Eu também não. Sobre feriados e domingos tampouco temos discussões. Não raro chego em casa e ela já está dormindo. Não temos tido urgências por nosso contato há tempos.

         Li um pouco do romance policial que tinha na sala e voltei para meu balcão.           

         Avistei a dona Laura, do 301, que fala pelos cotovelos. Uns quarenta e muitos anos. Umas milhões e muitas fofocas. Infinitamente insuportável.

          -Chegou alguma coisa para mim? -Ela perguntou, se inclinando por cima do balcão.

          -Não. -Respondi, me movendo estrategicamente para impossibilitar que ela visse a caixa com as coisas de Isaac. As perguntas e afirmações desagradáveis seriam muitas.

          -Tudo bem. -Ela ajeitou o lenço que estava usando no pescoço. -Você sabe se a Sônia já saiu hoje? Sozinha? -Ela perguntou, baixando o tom de voz.

          -Sinto muito. Se saiu, não foi durante o meu turno. -Respondi.

          “Saiu sim, ao lado de uma mulher bastante alta e atraente. Piscou pra mim enquanto mordia a língua. Talvez alterada. Certamente animada. Mas não é da sua conta.”

          Ela foi até o elevador sem proferir qualquer outra palavra.

          Já sentado há mais de meia hora, sem ver qualquer tipo de movimento, desbloqueei meu celular. Rolei a galeria de fotos bem para cima, onde vi as últimas fotos que tirei de Daniel. Um pouco mais para cima tinha uma foto de seu primeiro ano de vida, no colo de Cibele, comigo e Mariana ao lado. Lembro daquele dia, feliz. Calor agradável e brisa fresca, passeio na praça, sorvete, algodão-doce com máscara da Cinderela, leite materno. Ao lado, uma foto de meu pai, que tirei por cima do álbum mesmo. Entre os reflexos do plástico se vê seu sorriso solto abaixo do bigode. Foi muito cedo. Não viu o neto nascer. Pelo menos tampouco o viu morrer. Uma notificação surgiu. Mensagem de Cibele.

          ‘Acho que está na hora de pararmos com isso’.

          Foi quando ouvi o barulho de interfone e liberei a entrada de Isaac, já colocando a caixa de papelão em cima do balcão. Ele entrou a passos lentos e pesados, enquanto alternava seu olhar entre a caixa e eu. Respirou fundo, pegou-a e disse, de cabeça baixa:

          -Acabou. Tchau Júlio.

          ‘É. Acabou.’         


(2023)

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