FÉLIX
Olhei de longe. Seria impróprio chegar mais perto
Por sorte, a cerimônia final se realizava em um local aberto, e fui capaz de distinguir todas as imagens.
Os Lass.
“Malditos.”
Eu tinha um certo nojo daquela família. A mãe saudável demais; o pai bem-sucedido demais; o filho bonito demais; a filha certinha demais.
“A outra filha... morta demais.”
Eu não pretendia falar com a Cecília nunca mais nesta vida. Não tinha o mínimo interesse.
“Quem sabe se algum dia me desse uma vontade repentina de comer ela, aí eu entraria em contato.”
Afastei o pensamento. Ela tinha razão todas as vezes em que me chamara de babaca.
A Cecília era como eles: cabelos longos, pretos e brilhosos; pele branca com algumas sardas; estrutura alta e larga; peitos grandes; nariz um pouco achatado. Mas, ao mesmo tempo, era tão diferente: os cabelos eram sempre uma bagunça cadente de ondas malformadas; a risada era mais frouxa; a vontade de fazer o que desse na telha era mais comum.
Percebi que estava ficando com vontade de chorar. Não sei o porquê, mas reprimi quaisquer lágrimas que fizessem menção de cair.
“Nunca mais vou falar com ela nesta vida, mesmo. Será impossível.”
E isso me irritava. Eu deveria ter o controle. Não foi justo ela terminar a nossa história fugindo de mim, de quando admiti que não tinha sido o melhor cara do mundo e que não queria vê-la bem. Como eu poderia me redimir se ela não me desse abertura? Como ela iria dar abertura se tinha dado cabo de sua própria história?
Puxei o maço de cigarros que estava no meu bolso e peguei um.
“Bastante irônico.”
Ela detestava cheiro de cigarro. Se recusava a me beijar depois que eu fumasse.
Guardei o cigarro de volta no maço, e o maço de volta no bolso, em sinal de respeito.
“Senão em vida, pelo menos em morte.”
Eu nem era tudo isso de ruim vai. Só aquela figura que usava coturno e alargador que ela gostava, exatamente por saber que os pais odiariam (mas o meu alargador é pequeno).
Ela me confessou uma vez que era por isso que tinha se interessado por mim. Que sentia uma atmosfera sexy exalando da minha pele bronzeada. Sexy e auto apreciativa (duas verdades). Era óbvio que ela iria querer ver a minha pele bronzeada por inteiro.
E foi o que a gente fez.
Transamos no estacionamento do shopping, no banheiro da faculdade, estacionados em algum canto deserto, em uma ou duas festas, atrás daquele bloco da faculdade que ficava completamente vazio quando escurecia, e no meu quarto.
Nunca vi o seu quarto. Ela jamais me levaria para dentro da casa dos pais dela.
Eles sabiam que ela estava saindo com um cara da faculdade, mas não era nada sério (e realmente não era). Não era caso de apresentar à família ou até mesmo falar de mim. Ela não queria iniciar o conflito que inevitavelmente aconteceria caso seus pais descobrissem que tipo de cara era esse, mas adorava ficar imaginando a desaprovação deles.
Comigo ela era isso: uma mulher que podia sentir tudo. Não fumava e nem chapava; sentir-se outra pessoa por alguns momentos já era o suficiente para garantir seu êxtase (e eu sei que ela tinha medo de que identificassem cheiros diferentes em seu hálito).
Além do sexo, claro, que ela adorava. Um sexo no qual ela gostava de se sentir usada, além de consciente de que também estava me usando. Eu sempre representava o mais forte; ela só se deixava levar. Até quando eu tomava decisões que ela desaprovasse, ela deixava acontecer. Acho que simplesmente queria renunciar ao controle, da pose, dos cuidados e da autopreservação. Afinal, estar comigo poderia representar tudo, menos autocuidado.
“Eu gostava dela. De alguma forma, gostava dela.”
Olhei para sua mãe, que era o retrato da tristeza e, por alguns segundos, senti pena daquela madame, que tinha uma bolsa de marca em um dos braços no enterro da filha. Seus filhos remanescentes se aproximaram, envolvendo-a como para que criar uma fortaleza, para que ela pudesse surtar e desfalecer, por um mísero momento de fraqueza, antes que tivesse que voltar a ser a mãe, a esposa, a senhora que carregava responsabilidades de manter a estrutura da família.
Que estrutura era essa agora? Um dos prédios tinha sido demolido para sempre. Impossível de ser reconstruído.
“Perda total, minha senhora.”
Por que ela não estava gritando com todos, chutando a grama, arrancando seus cabelos ou sequer borrando a maquiagem? Era isso que eu não entendia: qual a necessidade de se manter aparentemente forte, quando todo mundo ao redor sabe que você está destruído por dentro?
“Que ironia.”
Pois era exatamente assim que a Cecílass era.
Cecílass, exatamente, como um nome artístico. Forte, com personalidade e estilo. Até parece que alguém com um nome desses sofria de depressão e viria a tirar sua própria vida.
Eu sabia que ela tinha aquela doença. Mas tanta gente têm.
É quase moda nos dias de hoje. Você só poderia estar mais na moda ainda se tivesse ansiedade no combo.
“Acho que ela também tinha. Sei lá.”
Vi outras pessoas ao redor do caixão também. Alguns amigos dela que eu conhecia e mais várias pessoas que eu não fazia ideia de quem eram. Ao longe, um menino de óculos que eu sabia que era da nossa faculdade também (mas mais novo). Ele enxugou uma lágrima, enquanto se afastava, cada vez mais.
Eu não conseguia ouvir nada, mas imagino os discursos genéricos que devem ter sido feitos sobre a Cecílass: criativa, cheia de energia, uma força da natureza; gentil, de feições suaves e amor pela vida (irônico, não?).
De repente, senti uma presença perto de mim. Olhei para o lado e vi: um rapaz um pouco mais alto que eu, todo de preto e com os olhos inchados, o cabelo perfeitamente penteado e as mãos muito brancas. Ele olhou para mim e, sem dizer nada, se sentou ali, no topo do morro.
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